Cartas, despedidas e reencontros

Li há um tempo a coletânea de cartas trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino, uma delícia de ler. E sempre lembro de uma dessas cartas nas minhas idas e vindas a Recife, que já somam quase 5 anos.

Eis as passagens:

"Para mim, sair do Brasil (no meu caso, Recife) é uma coisa séria e, por mais 'fina' que eu queira ser, na hora de ir embora choro mesmo".

"Depois, também, eu me encabulo de estar sempre chegando e indo embora, o que obriga os amigos a um movimento em torno de mim, um movimento que às vezes nem cabe direito na vida deles".

Pior ainda quando meu melhor amigo ao me abraçar na despedida fala: "Finha, a vida da gente vai ser sempre assim? Despedidas e reencontros?" Como se responde isso?? :/

Para quem quiser conferir na íntegra a troca das cartas:

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Washington, 25 setembro 1954, sábado.


Fernando,

estou com a impressão meio inventada de que você ficou zangado quando eu disse pelo telefone que não queria que você fosse ao aeroporto. Você ficou de telefonar à 1:30, e não telefonou. Fiquei amolada com a minha falta de cortesia, respondendo à sua gentileza com uma sinceridade ou franqueza que ninguém usa. Você gentilmente mostrou intenção declarada ou vaga de ir ao aeroporto, e eu, que tanto faço questão de não usar a alma na vida diária, pois é até de mau gosto, disse que não. Eu já lhe expliquei o motivo da minha rudeza -o que não a justifica- e explicarei de novo.

Para mim, sair do Brasil é uma coisa séria e, por mais 'fina' que eu queira ser, na hora de ir embora choro mesmo. E não gosto que me vejam assim, embora se trate de lágrima bem-comportada, de lágrima de artista de segundo plano, sem permissão do diretor para arrumar os cabelos... Não é por vaidade de rosto que não gosto que me vejam de olhos vermelhos, é por uma vaidade que, por ser menos frívola, é muito mais pecado: é por orgulho ou altivez ou seja lá o que for -enfim, vaidade mais grave.

Depois, também, eu me encabulo de estar sempre chegando e indo embora, o que obriga os amigos a um movimento em torno de mim, um movimento que às vezes nem cabe direito na vida deles. Então procuro dispensar a gentileza dos amigos, e facilitar a vida diária de cada um que já é bastante cheia e complicada sem uma ida ao aeroporto. Maury diz que eu costumo ter reações pessoais a coisas chamadas 'de praxe'. Parece que é mesmo verdade. Parece que eu seria capaz de pedir sinceramente a alguém que não apanhasse minha luva caída no chão para não amolar esse alguém, sem entender que incômodo é não apanhá-la, que incômodo é não fazer o que é 'de praxe'. (O exemplo da luva é só para exagerar, até que deixo apanharem minhas luvas, senão perderia todas...)

Quanta explicação! E provavelmente você nem ficou zangado com minha descortesia, provavelmente você não telefonou depois porque estava ocupado. É o que espero que tenha acontecido. Esperando também que você não ria das tolas e inúteis complicações de sua amiga.

Clarice


Rio, 19 de outubro de 1954


Clarice,

Suas 'complicações' não são tolas, mas inúteis. É verdade que você não precisa absolutamente se preocupar, não fui ao aeroporto porque você não queria e então acabou-se, e não telefonei porque na hora deve ter acontecido alguma coisa de que já não me lembro, e depois você já não estava. Mas valeu o desencontro porque forçou uma carta tão boa que parecia uma carta de Mário de Andrade e isso é elogio. Respondo agora me forçando um pouco (são 2 horas da manhã, me prometi não passar de hoje) pois quero ver se venço essa minha inércia mental com relação a cartas. Tanto mais que sinto necessidade real de escrever a você e vou deixando passar, talvez porque inconscientemente julgue que nada de importante tenho a lhe dizer, você sempre mereceria mais do que atualmente sou capaz de dizer numa carta. E sei como são importantes as notícias para quem está no estrangeiro.

Infelizmente não tenho nenhuma a dar, senão que tudo vai indo na mesma e se as coisas mudam é porque nada precisamos fazer para que mudem. Nada tenho feito e no entanto várias coisas mudaram. Não me mudei; continuando morando no mesmo lugar, para onde você tem a partir deste momento a obrigação moral de escrever. Preciso do seu estímulo - o de alguém que, não vendo as coisas de perto, tem mais perspectiva. E prometo responder, farto de notícias. Creia-me, esta carta já é uma vitória para quem não sabe mais o que dizer. Só é sincero aquilo que não se diz - e nem isso é meu, li em alguma parte. Como você vê, isso para um escritor é estar no mato sem cachorro.

Abrace por mim ao Maury e acredite sempre na amizade do seu

Fernando

Comentários

Belle Bento disse…
eu sou uma a-pai-xo-na-da por cartas. e essa sua referência à da Clarice é mais que necessária nesses dias em que tudo é virtual demais.
(...)
foi em trocas de cartas que eu descobri um grande amor. e será por elas que um dia dele terei que me despedir. porque a vida é curta demais pra tanto sentimento.

minha filha se chamará Clarice.
Anônimo disse…
Bela referência, belo post. Me passe seu endereço por favor. Daqui uns 150 anos seremos lembrados em blogs de outrem.

Rodrigo Coimbra
Fernanda Cibele disse…
já fui do tempo que trocava cartas com as amigas, primas, principalmente porque parecia uma andarilha. Nasci em SP, mudei pra cá, depois pra GO e voltei pra cá, onde estou desde então. Assim, sempre tenho muitas despedidas e reencontros. Tenho saudade do tempo que trocava cartas. Era um sentimento que e-mail nenhum, tecnologia nenhuma é capaz de me dar. Ainda guardo algumas!
Vontade de receber uma carta. Nem precisaria ser do Fernando, nem de minha xará. Delicinha de post, sabor de selo lambido.

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